Introdução
Neste artigo abordaremos a usucapião de imóvel por herdeiro, possibilidade já reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), bem como discorreremos sobre as estratégia legais para impedir que o sucessor atinja o direito a essa espécie de aquisição da propriedade.
O que é usucapião?
A usucapião é uma forma originária de aquisição da propriedade pelo exercício da posse no decurso do tempo, por prazos previamente estabelecidos em lei. O instituto jurídico tem recebido especial atenção desde o advento da Constituição Federal de 1988 e é disciplinado pelo Código Civil brasileiro, nos arts. 1.238 a 1.244, do Capítulo II, Seção I do diploma legal.
Para a aquisição do domínio pela usucapião, a lei estabelece alguns requisitos rígidos, tais como: a posse mansa e pacífica, com ânimo de dono, sem oposição; o tempo necessário à consolidação da prescrição aquisitiva, e a coisa hábil, ou seja, que o bem seja passível de ser apropriado.
Nesse sentido, entre as principais espécies previstas pela legislação, podemos citar:
- Usucapião Extraordinária: prevista no art. 1.238 do Código Civil, com prazo de 15 (quinze) anos de posse ininterrupta, sem oposição, independentemente de justo título e boa-fé;
- Extraordinária Habitacional ou Pro Labore: prevista no Parágrafo Único do art. 1.238 do Código Civil, o qual reduz lapso temporal para 10 (dez) anos do exercício da posse se ela for ininterrupta e sem oposição para fins de moradia habitual ou que tenha o possuidor realizado obras ou serviços de caráter produtivo, independentemente de justo título e boa-fé;
- Usucapião Ordinária: prevista nos arts. 1242 e 1379 do Código Civil, requer prazo de 10 (dez) anos e o exercício de posse ininterrupta e sem oposição, com justo título e boa-fé;
- Usucapião Ordinária Habitacional ou Pro Labore: prevista no Parágrafo Único do art. 1.242 do Código Civil, o qual reduz para 5 (cinco) anos o exercício da posse se ela for ininterrupta, de boa-fé e sem oposição, com justo título, e se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelado posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos rurais de interesse social e econômico;
- Usucapião Constitucional Urbana: prevista no art. 1.240 do Código Civil e no art. 183 da Constituição Federal/88, requer prazo de 5 (anos) de exercício de posse ininterrupta e sem oposição de área urbana de até 250m² para fins de sua moradia e sua família, desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural;
- Usucapião Constitucional Rural: prevista no art. 1.239 do Código Civil e no art. 191 da Constituição Federal/88, requer prazo de 5 (cinco) anos de posse ininterrupta e sem oposição de área de terra em zona rural não superior a 50 hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia e desde que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural;
- Usucapião Familiar ou por Abandono de Lar: prevista no art. 1.240-A do Código Civil, requer prazo de 2 (dois) anos de posse direta, ininterrupta e sem oposição, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250,00m², cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Entendimento do E. Superior Tribunal de Justiça – STJ sobre a possibilidade de usucapião por herdeiro
Superada a compreensão legal do instituto jurídico da usucapião, passemos a analisar a possibilidade de aquisição originária da propriedade hereditária por um de seus herdeiros, direito já reconhecido e perenizado pelo STJ.
Conforme a previsão do art. 1.784 do Código Civil, aberta a sucessão, ou seja, ocorrendo a morte do autor da herança, esta se transmite imediatamente aos herdeiros legítimos e testamentários. Essa é a ficção jurídica de transmissão de bens, denominada pelo direito francês como saisine.
A partir dessa transmissão, os herdeiros passam a exercer o condomínio pró-indiviso sobre a herança, sendo todos os sucessores proprietários da integralidade do patrimônio deixado pelo de cujus. Esse direito passa a ser regido pelas mesmas normas relativas ao condomínio (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil).
Nesse sentido, em diversas ocasiões o STJ reconheceu o direito do herdeiro usucapir o imóvel objeto de herança, em detrimento dos demais herdeiros, comprovado o exercício exclusivo de posse mansa, pacífica, ininterrupta, sem qualquer oposição, pelo lapso temporal de 15 (quinze) anos.
Para a melhor compreensão desse entendimento, vejamos o julgamento da 3ª Turma do STJ no REsp 1631859/SP:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. PREQUESTIONAMENTO. AUSÊNCIA. SÚMULA 282/STF. HERDEIRA. IMÓVEL OBJETO DE HERANÇA. POSSIBILIDADE DE USUCAPIÃO POR CONDÔMINO SE HOUVER POSSE EXCLUSIVA. 1. Ação ajuizada 16/12/2011. Recurso especial concluso ao gabinete em 26/08/2016. Julgamento: CPC/73. 2. O propósito recursal é definir acerca da possibilidade de usucapião de imóvel objeto de herança, ocupado exclusivamente por um dos herdeiros. 3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial. 4. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários (art. 1.784 do CC/02). 5. A partir dessa transmissão, cria-se um condomínio pro indiviso sobre o acervo hereditário, regendo-se o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, pelas normas relativas ao condomínio, como mesmo disposto no art. 1.791, parágrafo único, do CC/02. 6. O condômino tem legitimidade para usucapir em nome próprio, desde que exerça a posse por si mesmo, ou seja, desde que comprovados os requisitos legais atinentes à usucapião, bem como tenha sido exercida posse exclusiva com efetivo animus domini pelo prazo determinado em lei, sem qualquer oposição dos demais proprietários. 7. Sob essa ótica, tem-se, assim, que é possível à recorrente pleitear a declaração da prescrição aquisitiva em desfavor de seu irmão – o outro herdeiro/condômino -, desde que, obviamente, observados os requisitos para a configuração da usucapião extraordinária, previstos no art. 1.238 do CC/02, quais sejam, lapso temporal de 15 (quinze) anos cumulado com a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição do bem. 8. A presente ação de usucapião ajuizada pela recorrente não deveria ter sido extinta, sem resolução do mérito, devendo os autos retornar à origem a fim de que a esta seja conferida a necessária dilação probatória para a comprovação da exclusividade de sua posse, bem como dos demais requisitos da usucapião extraordinária. 9. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. STJ. 3ª Turma. REsp 1631859/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/05/2018, DJe 29/05/2018. [grifo nosso]
Diante disso, são muito comuns os casos em que os pais falecem e um determinado filho (a) permanece na posse do imóvel objeto da herança. Desse modo, ao postergar a abertura do inventário, a posse exclusiva do filho que ficou no imóvel se prolonga no tempo, sem qualquer oposição dos demais herdeiros, o que favorece a configuração da prescrição aquisitiva da propriedade em favor do herdeiro possuidor. O que muitos não sabem é que alguns remédios jurídicos podem evitar que isso aconteça.
Mecanismos jurídicos que evitam a configuração da posse ad usucapionem pelo herdeiro possuidor da propriedade hereditária
Nesse contexto, se os demais herdeiros não possuem a intenção de ceder ao irmão os seus direitos hereditários relativos ao imóvel, e se a família pretende realizar a partilha formal da integralidade da herança, o ordenamento jurídico dispõe de alguns mecanismos legais capazes de evitar a configuração da posse ad usucapionem do sucessor ocupante da propriedade, quais sejam:
- Arbitramento de aluguel: os demais herdeiros podem cobrar aluguel do herdeiro possuidor do imóvel;
- Contrato de comodato: através deste contrato, os sucessores expressam que a posse do herdeiro sobre o imóvel se trata de mero empréstimo/concessão;
- Notificação extrajudicial: os herdeiros podem notificar o possuidor a desocupar o imóvel objeto de herança.
Em todos os casos, tais medidas desvirtuam a posse do herdeiro que ocupa o imóvel com exclusividade, afastando o animus domini e descaracterizando qualquer sombra de prescrição aquisitiva ensejadora de usucapião.
Conclusão
O tema aqui tratado ajusta-se ao consagrado alerta e brocardo jurídico: “o direito não socorre aos que dormem”. Em muitos casos, os sucessores procrastinam a realização da partilha formal do acervo hereditário, ao mesmo tempo em que não oferecem qualquer oposição à posse exclusiva do herdeiro que permaneceu no imóvel objeto de herança. Assim, o herdeiro possuidor alcança a almejada prescrição aquisitiva para usucapir a propriedade, ao passo que os coproprietários perdem qualquer direito sobre o bem. Logo, para que isso seja evitado, não hesite em buscar a assistência jurídica de um advogado especialista em direito imobiliário e sucessório.
Referências
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. É possível a usucapião de imóvel objeto de herança ocupado exclusivamente por um dos herdeiros. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: < https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/detalhes/c75e10ef9ef6d295d4ceba8335d93bdd >. Acesso em: 10/01/2024
SCAVONE JÚNIOR, Luiz Antônio. Direito Imobiliário: teoria e prática, 19ª ed. Rio de Janeiro, 2023, Editora Forense
BRASIL. Lei n. 10.406, 10 de janeiro de 2002. Código Civil.